quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

O Carnaval é a festa profana mais antiga que se tem registro, provavelmente, com o sentido atual de folgança coletiva e inversão das posições sociais, já existe há mais de três mil anos. As suas raízes mais remotas encontram-se na Grécia Antiga, no culto a Dionísio, o deus da vindima, que mais tarde foi celebrado em Roma como Baco, espalhando-se para os países de cultura neolatina
As Origens Primordiais da Festança Dionísio, mais conhecido entre nós como Baco, era um deus bastardo para os pagãos. Perambulara por muito tempo pela Ásia Menor até que, conta a lenda, pelas mãos do sacerdote Melampo, introduziu-se nas terras gregas. Tornou-se um sucesso. Conforme as plantações de parreiras se espalhavam pelas ilhas da Grécia e pela região da Arcádia, mais gente o celebrava. Em todas as festas no campo ele se fazia cada vez mais presente. Por essa altura, já entronado como deus das vindimas, representavam-no como uma figura humana, só que de chifres, barbas e pés de bode, com um olhar invariavelmente embriagado.
As Bacantes Consta que as primeiras seguidoras do deus Dionísio, há uns 3 ou 3,5 mil anos atrás, foram mulheres que viram nos dias que lhe eram dedicados um momento para escaparem da vigilância dos maridos, dos pais e dos irmãos, para poderem cair na folia "em meio a danças furiosas e gritos de júbilo", como disse Apolodoro, testemunha duma daquelas festas. Nos dias permitidos, elas, chamadas de coribantes, saíam aos bandos, com o rosto coberto de pó e com vestes transformadas ou rasgadas, cantando e gritando pelas montanhas gregas. Os homens, transfigurados em silenos e sátiros, não demoraram em aderir às procissões de mulheres e ao "frenesi dionisíaco". A festança que se estendia por três dias, encerrava-se com uma bebedeira coletiva em meio a um vale-tudo pansexualista
Um Mundo Invertido Arlequim Nos primórdios do culto a Dionísio, as autoridades (as cortes, os sacerdotes e os ricos) não gostaram nada daqueles festejos malucos. Entre outras razões porque eram as vítimas favoritas das sátiras. Os festejos bacantes, como é sabido, além de serem um teatralização coletiva da inversão de tudo, serviam como um acerto de contas do povo com os seus governantes. Ainda que metafórico e psicológico. Neles, o miserável vestia-se de rei, o ricaço de pobretão, o libertino aparece como guia religioso, e a rameira local posava como a mais pura donzela, machos reconhecidos vestem-se como fêmeas, e assim por diante. Dionísio brincalhão, irreverente e debochado, estimulava que virassem o mundo de ponta-cabeça. Do carnaval veio o teatro A repressão fracassou. Foi então que no século VI a.C., Pisístrato, o tirano de Atenas, oficiou-lhe homenagens. Não só isso. Construiu-lhe um templo na Acrópole: o teatro Dionísio, que está lá até hoje. Organizou em seguida concursos de peças cômicas ou dramáticas para celebrá-lo no palco, iniciando assim em Atenas a política do amparo às artes cênicas pelo Estado.
O carnaval brasileiro, trazido pelos portugueses no século 17 com o nome de entrudo, é um herdeiro direto das bacantes e das saturnais greco-romanas. E, pode-se dizer, ao longo desses três séculos em que tornou-se na maior festa popular do Brasil, percorreu a mesma trajetória de acomodação dos seus antecessores. A plebe colonizada imediatamente aderiu ao entrudo como um imperdível momento de inverter, ainda que simbolicamente, o mundo desgraçado em que vivia. Naqueles dias tão aguardados, quando a troça assumia ares de majestade, nenhum fidalgo ou pomposo qualquer, nada que fosse solene, oficial ou sublime, escapava da mordacidade dos festeiros do rei Momo (deus pagão menor que presidia os festejos carnavalescos em Roma).
Caíram na armadilha de Apolo. Para exibirem-se ao grande público precisavam de dinheiro, que, como se sabe, só se encontra nos bolsos dos figurões, públicos ou privados. Impedidos moralmente de ridicularizarem ou glosarem os patrocinadores que os mantêm e amparam, os sambas-enredo - expressão musical do Dionísio acomodado de hoje -, esvaziados da irreverência e da gostosa safadice, não dizem mais nada. Comumente a cantoria é só elogio e reverência, quando não propaganda aberta de quem financiou o desfile. O luxo das fantasias e a parafernália dos alegóricos cerceia qualquer gesto mais solto, espontâneo ou original, liberando-se apenas a sensualidade, exposta em nichos especiais, não mais acolhendo o elemento de contestação divertida. O resultado disto é a mesmice. Quem assiste a um só desfile de escola de samba - ainda que reconhecendo estar frente a um dos maiores espetáculos populares da Terra - viu a todos, os que passaram e os que ainda virão. Domesticaram Dionísio!

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